Não sou só eu, pois não?
Não é meu costume falar muito sobre mim própria naquilo que escrevo. Falei, é certo, de temas que me são muito caros, mas nunca abordei muito o meu universo pessoal.
Falar de mim, na intimidade circunscrita da primeira pessoa, sem recurso à capa protectora da ficção ou da poesia, é algo que me causa alguma estranheza e desconforto. Nem sequer o fiz aqui no Antagonismos – onde apresento as minhas opiniões mais crispadas, mas não propriamente as minhas emoções e experiências mais pessoais.
Talvez muitos digam “e ainda bem que não o fizeste!”, não há necessidade alguma de quebrar a quarta parede! Talvez outros discordem, achando que um discurso pessoal pode lograr conexões mais valiosas com o foro íntimo de quem lê. Talvez sim, talvez não, talvez nim!
Há uma primeira vez para tudo. Portanto, e seja como for, aqui estou, não muito segura, mas pronta. Avancemos, então.
Sempre senti – mais na juventude e menos na minha idade adulta – que, de alguma maneira, o meu corpo me sabotava. Ou, pelo menos, que não conspirava a meu favor. Reúno, na minha crua e ríspida auto-opinião, uma série de defeitos que suplantam largamente as (também auto) consideradas poucas qualidades. Descansem, que não vou pôr-me aqui a enumerar defeito físico por defeito físico, até porque se há uma coisa que a idade me trouxe foi a sabedoria de me aceitar como sou – e de gostar de o ser. Bom... Às vezes. Na maior parte dos dias.
A grande maioria dos defeitos que mais me molestam nem são sequer os estéticos – haverá um ou dois que me irritam de sobremaneira, mas não me tiram o sono nem me dão a vontade de sair de casa com um saco enfiado na cabeça. Os que mais me incomodam são, sem dúvida, os que interferem de sobremaneira com o meu bem-estar físico, porque geram dor, consistente e quase constante, afectando, inevitavelmente, o bem-estar psíquico, também. Já para não falar do humor...
Estes são defeitos (uns, creio, até serão de fabrico!) com os quais alguns dos que me lêem até identificarão também como seus – espondilose, escoliose, osteofitose (os célebres “bicos de papagaio”), e mais não sei quantas outras oses, que me afligem e me agudizam os dias!
Acontece ainda – não sei se se deram conta... – que também sou mulher. E nós mulheres, ou algumas de nós, pelo menos, temos a péssima, a estúpida mania de nos habituarmos à dor. Já nascemos com o chip da tolerância à dor embutido, e, então, acabamos, eventualmente, por acolhermos todas as nossas dores como algo que nos integra e até caracteriza. São as costas, a cabeça, os ovários, seja o que for. E isto é muito mau, porque tendemos a desvalorizar os sintomas dolorosos, e apenas a tolerá-los, correndo sérios riscos de menosprezar condições que são sinais evidentes de doenças, que poderão ser fatais. Ou, simplesmente, não tentar resolvê-los para conseguir viver sem dor.
Vocês, mulheres, sabem como é – e sabem que estamos sempre a fazer esta asneira! Sim, temos de parar com isso, e ter mais juízo, perceber de uma vez que viver com dor não é normal. Normalizar a dor é um comportamento de risco, e o pior é que o estamos a ensinar às nossas filhas. Portanto, uma estalada global na testa feminina, e juremos não tornar!
Mas não é só sobre isso que eu quero falar hoje – embora este tópico já fosse um óptimo antagonismo a dissecar e criticar!
O que quero partilhar advém um pouco desse comportamento pernicioso, sem dúvida, e que gera aquilo que se torna ainda mais perigoso e nos deixa a todas sozinhas na nossa pequena loja de horrores e dores: o silêncio.
O silêncio tem muitas formas. Desde o que não dizemos aos mais próximos, desde o que calamos junto dos menos chegados, com um transigente encolher de ombros, ou com uma máscara sorridente colada ao rosto. O resultado não varia muito: os silêncios que outorgamos no nosso dia-a-dia gritam muito alto cá dentro.
Há ainda o silêncio que temos umas com as outras. Mulher que é mulher não se queixa a outra mulher! Falamos displicentemente de tudo o que estamos a passar e nos pesa, como se nada fosse além do que é normal passar, como se não pesasse mais do que é esperado pesar. «É assim, é a vida, é normal» – rematamos. E ala, cada uma para seu lado, a sofrer sozinha!
É certo que há mudanças que começam a tomar forma, que há temas que já começam a ser discutidos e ideias antiquadas que começam a ser desconstruídas. As dores menstruais severas já não são normais, a gravidez já não é sempre uma coisa absolutamente maravilhosa e mágica, o pós-parto não é sempre uma fase bela e repleta de amor, a maternidade não é tudo para a mulher, e para muitas até pode não ser nada. E estamos bem com isto! Ou vamos aprendendo a estar, aprendendo a ver estas realidades sem os óculos cor-de-rosa postos desde há tantas gerações, que nem sabemos dizer ao certo onde aquelas ideias feitas começaram.
Contudo, há ainda uma realidade que não está – parece-me, sinto – a ser vista da mesma forma concreta e realista. Falo da menopausa, ou ainda antes dela, a perimenopausa.
Tenho visto muitos vídeos, lido muitas declarações e informações, e todos me parecem dizer a mesma coisa: não é o fim do mundo, vai passar, há formas de aguentar melhor, é uma fase natural, e tem também a sua beleza (não estou bem a ver onde, mas enfim...).
Há quem partilhe reacções mais honestas, mas quase sempre protegidas pelo escudo indefectível do humor. Rio-me muito, claro, porque muitas têm mesmo piada. Mas será que só conseguimos ser verdadeiras sobre esta realidade inalienável, inescapável, se dela falarmos em tom jocoso? Não será isso mais uma forma de desprezar e normalizar?
Tudo isto me faz sentir muito isolada, muito sozinha. E sei que não sou a única a sentir−me como me sinto. Então, porque não falamos disto com a mesma convicta sinceridade com que começámos a falar da gravidez e do pós−parto? Porque não somos mais corajosas e dizemos o que estamos todas a sentir, ao menos umas às outras?
Bom, há que tornar isto mais claro. É possível que não estejamos todas a sentir e a passar pelo mesmo – e por todas refiro-me às mulheres com 40 anos e mais. É aqui que se torna relevante a minha partilha pessoal! Vou tentar, o melhor que conseguir, descrever o que esta fase da existência feminina está a ser para mim.
E é agora que as pernas me tremem, e hesito em concluir este artigo. Porque admitir tudo o que de facto ando a pensar e a sentir, não é só um destapar da minha intimidade, mas é também um risco. E se for só eu a sentir isto? Não posso ser só eu, pois não? E se mais ninguém se identificar? E se muita gente se identificar, mas não quiser, ou não conseguir manifestar a sua concordância, o reconhecimento, uma espécie de me too da meia-idade?
Bem, o que é a vida senão risco, não é? Então, continuemos, já que chegamos até aqui.
Há algum tempo que penso que a perimenopausa é um caldinho composto de todas as fases hormonais anteriores, possíveis e imaginárias! Viver na perimenopausa é como viver na puberdade, na menstruação, na TPM, na gravidez, no pós-parto, tudo ao mesmo tempo! E é natural sentir isso, porque a oscilação hormonal que experimentamos agora, já sentimos antes – hormonas a entrar, hormonas a subir, hormonas a descer, hormonas a desaparecer – mas não todas de uma vez, todos os dias! Eis o que me sucede: choro por tudo e por nada, zango−me violentamente por ninharias, isolo−me em depressão, e logo a seguir rio−me até às lágrimas – tudo no mesmo dia, ou até na mesma tarde! É uma espécie de bipolaridade, (em menor grau, evidentemente) que me assola e que não consigo controlar. Escusado será dizer que a minha linguagem vernácula tem sido bastamente usada... Mais alguém se revê?
Estes perturbadores sintomas emocionais e psicológicos, que já seriam o bastante para me manter entretida, não estão, contudo, sozinhos. Claro que não! Há toda uma panóplia de sintomas físicos para preencher os momentos em que os outros se encontram em raro sossego – ou não! E é aqui que o meu corpo traidor e conspirador se regala à grande! Como se não bastassem todas as pequenas e médias maleitas residentes, eis que a elas se juntam mais umas quantas!
A saber: insónia galopante, de ficar até às tantas da madrugada sem conseguir desligar o cérebro e adormecer; sono irregular, nas vezes em que consigo adormecer a horas relativamente decentes, mas acordo cedo demais, instalando−se a insónia de novo; cansaço constante (muito provavelmente relacionado com a falta frequente de um sono reparador), e quebras bruscas de energia; comichões irritantes por todo o corpo, sem que haja alguma razão visível para tal, como picada de insecto ou urticária alérgica, e que passam tão subitamente quanto surgem; desregulação térmica (os famigerados fogachos, e sensação de muito frio injustificada); dificuldade extrema de concentração, que é para mim o mais desesperante, porque não consigo ler, e, pior ainda, não consigo escrever, nem com a diversidade nem com o nível de produtividade com que escrevia. A poesia ainda se vai aguentando, mas a ficção anda pelas ruas da amargura! Crónicas nem vê-las; valha-nos hoje este artigo!
A par de tudo isto, somam-se ainda a angústia de sentir o tempo a colar-se definitivamente à pele e à alma. A velhice está à porta e não pede licença para ir entrando! Veio mesmo para ficar. Não é a perda da jovialidade, da agilidade, ou sequer da atractividade, que me preocupam, e que me entristecem. É a perda de relevância. É a perda da identidade adquirida, conquistada, trabalhada, conhecida. Quem é esta criatura na qual me estou a tornar? Sinto que há um corte efectivo e irremediável, mais profundo do que as mudanças da adolescência, mais impactante do que a entrada na idade adulta. Tudo isso era presente, tudo isso prometia futuro. Isto agora é só o princípio do fim.
Não me venham dizer o que eu já ouvi, e o que eu já sei: velhos são os trapos, há vida para viver enquanto se quiser, isso são só reacções que derivam de uma mentalidade social imposta que despreza as pessoas de mais idade e só valoriza o que é jovem, novo, viçoso, como se a sabedoria e a experiência não valessem nada. Sim, eu já sei isso tudo. Não nasci ontem, não é óbvio? Saber isso não me traz consolo. Não pelo menos nas fases hormonais descendentes!
Eu sei que há soluções, que há terapias, que há formas de tornar tudo isto em qualquer coisa menos má. Em qualquer coisa mais tolerável e menos desesperante. Também não precisam de me aconselhar.
Não é esse o meu objectivo nesta partilha. O que pretendo, além de manifestar o meu flagrante e severo antagonismo face à p**a da perimenopausa – que já dura há não sei quantos anos! – é sacudir esta poeira dourada com que muitas das mulheres da minha idade, ou um pouco mais velhas, parecem estar cobertas, sorrindo perante todas estas ansiedades, dores e angústias como se fossem pequenas adversidades que nós, mulheres, temos a obrigação de ultrapassar com a ligeireza e a desvalorização do sofrimento de sempre, porque somos fortes e aguentamos tudo.
O que eu pretendo é insurgir−me contra esse falso sorriso, congelado nesses rostos que escondem a sua aflição, a sua dor, e nos faz sentir a nós, todas as outras, fracas, derrotistas, inferiores.
Esta fase é tudo menos leve e fácil de viver com um sorriso. Esta fase pode ser natural e inevitável, mas não é por isso que temos de a viver em modo de negação, em modo de “aguenta mais esta”, e, especialmente, em modo de “devo ser só eu que não estou a lidar bem”!
Temos o direito de não lidar bem, temos o direito de sucumbir, temos o direito de dizer “isto é mesmo uma grande merda”! E temos o direito, senão talvez mesmo o dever, de o dizermos umas às outras, e parar de menosprezar o que sentimos em sociedade, com um sorriso de orelha a orelha, quando portas adentro estamos de rastos.
Gostava de ter tido a oportunidade de ter conversado sobre isto com a minha mãe. Mas não tive. Gostava de ter sabido como foi que a minha avó viveu a menopausa. Mas não soube. E acho que procuro isso em mulheres mais velhas, procuro saber o que de facto sentiram ou estão a sentir. Se calaram, se ignoraram, se se conformaram. Se se desesperaram, se nem nisso pensaram, se riram, se choraram. Mas o que eu encontro são revelações embrulhadas em sorrisos plácidos, que não me ajudam em nada e me fazem sentir ainda mais sozinha.
Não tem mal sorrir nem rir, atenção. Se não fosse a capacidade de rir, já não estava aqui!
Façamos as piadas todas, riamos com todos os memes e vídeos que parodiam brilhantemente estes sintomas – porque rir é o melhor antídoto para qualquer fase merdosa, em qualquer idade, e para qualquer género. Até porque se perdermos o humor, nada na vida tem muito interesse, seja em que fase for...
Mas sejamos mais sinceras umas com as outras. Com as amigas, com as irmãs, com as cunhadas, com as filhas, com as mães. Até com as anónimas ou menos conhecidas na esfera pública das redes sociais. Admitamos com mais benevolência para nós mesmas, também, que não estamos bem e que nos vai custar um bocado a voltar a estarmos bem. Não é preciso andar de estandarte na mão a fazer alarde de quão na merda nos sentimos nesse dia, claro que não. Mas não temos de disfarçar e muito menos de desvalorizar.
Se alguém mais se sente assim, gostava muito de saber a sua opinião, conhecer as suas ansiedades e fragilidades – se não quiserem partilhar publicamente nos comentários deste artigo, podem fazê−lo por mensagem privada no meu Instagram e Facebook. Porque honestamente, e de uma forma egoísta até, preciso mesmo de ouvir mais verdades e conhecer mais experiências. Porque não quero acreditar que estou sozinha. Gajas, digam−me lá, não só eu, pois não?
«Não sou só eu, pois não?» Reel