Manifesto anti-Gratidão
Dizem os gurus, neo-tecnocratas da alma, que devemos estar gratos: olhar à nossa volta e agradecer o que temos, é um exercício diário básico de uma mente sã e evoluída.
Como gosto de ser do contra, e como há ‘dizeres’ a cheirar a dogma reciclado, regurgitado pela ignóbil habilidade de quem se sabe aproveitar da tenrura de espírito alheia, vou desancar no conceito, e nas máximas delicodoces que nos enchem os feeds e nos esvaziam os cérebros. Aguentem-se, porque não vai ser bonito!
Eis o meu Manifesto anti-Gratidão.
1- Se não é expressão, tira daí a gratidão.
Comecemos pela simples utilização da palavra gratidão como se fosse uma expressão coloquial. Dizer “gratidão!”, quando um “obrigado/obrigada” são mais do que suficientes, ou seja, usar de eloquência dramática para simplesmente agradecer alguma coisa, não é só excessivo, é mesmo parolo.
“Gratidão” não é um adjectivo, e usá-lo como expressão, onde só um adjectivo se adequa, é um atestado de ignorância que era escusado exibir.
Mas não é grave. Não é preciso corarem. Não é como se dissessem ‘fostes’ e ‘fizestes’, ou ‘derivado a’.
2- Se a minha galinha é melhor que a da vizinha, agradeço muito e sigo a minha vidinha!
Nunca penses que és menos digno só porque te custa a sentir gratidão pelas coisas que tens na tua vida, quando há tanta gente a tentar sobreviver com tão menos.
Indigna-te é mais! Indigna-te por quem não tem um tecto e comida quente à mesa todos os dias, como tu tens; por quem vive só num muquifo que mal se pode apelidar de casa, sem o cuidado de familiares ou o afecto de amigos, como tu tens; por quem não tem saúde e padece para conseguir cuidados essenciais que a possam restaurar ou, pelo menos, melhorar; por quem vive na rua, indigente e indistinto; por quem sofre calado e só, sem saber como pedir ajuda, e a desejar o fim de tudo.
Indigna-te, mas à bruta, e a sério!
A conversa da gratidão serve apenas a conformidade e não a paz de espírito, e muito menos a humildade. Conformes e contentes, somos benignos, calados e obedientes.
A desgraça alheia não pode nem deve ser a medida da nossa sorte, nem o pulso que tomamos para aferir o nosso privilégio.
Este constante “olha para baixo e agradece”, distrai-nos de olhar ‘para cima’ e nos indignarmos contra quem ‘lá’ mora, contra quem rouba, quem explora, quem mente e sai sempre impune!
“Agradece, então,” – dirão – “a liberdade que tens, viveres num estado democrático e de direito, ainda que imperfeito! Podias ter nascido num Afeganistão ou numa Rússia putiniana, e agora estavas caladinha, de burka até aos olhos ou a beber um chazinho! Ou podias ter nascido num país de 3º mundo, sem acesso a cuidados básicos de saúde e saneamento, a morrer de fome e de sede!”
Não. Também não agradeço. Não agradeço o que é básico e essencial – saúde, higiene, saneamento, alimento, segurança. Liberdade de expressão. Porque são direitos civis e humanos consagrados em qualquer constituição digna desse nome.
Não agradeço o que tantos lutaram e sofreram, e mesmo morreram, para alcançar antes de mim, porque isso não lhes faria justiça. Agradecer de cabeça baixa, na modestiazinha pobrezinha e recatada de um “podia ser pior!” é cuspir na cara de quem os teve no sítio para lutar por todos – os são, obviamente, a coragem, o discernimento e o sentido de justiça social.
Pensam que têm muito a agradecer? Olhem à vossa volta! A menos que façam parte do 1% da população que detém 80% da riqueza mundial, não vejo razões para bater tão baixo a bolinha e levantar tão alto as mãozinhas a gritar “Gratidão!”
É a desculpa pós-moderna ideal, o penso-rápido existencialista para nos tranquilizar as consciências e dominar as vontades. Quanto a vocês, não sei, mas eu gosto de ter uma consciência agitada e intranquila – é sinal inequívoco de que está ser usada! – e as minhas vontades não são equídeos para levarem rédeas. Nem as vossas.
Portanto, parem já com essa mania demagógica e comecem a usar as mãos para fazer coisas mais úteis que desenhar corações, e essas cabeças para pensarem menos no vosso umbigo.
3- Com gratidão mais depressa curas essa depressão!
Sentir que a nossa vida é uma merda, que somos uns inúteis ou um desperdício de vida, não vai desaparecer num passe de mágica, só por olharmos para alguém que está ainda pior, ou até que lida com o mesmo, mas a partir de um contexto de privilégio inexistente.
Convenhamos, nem pode. O que dizer de uma pessoa que olha para alguém menos afortunado e se regozija por não estar no seu lugar? Até poderá ser um sentimento natural e espontâneo, mas se servir como ferramenta para regular a nossa ‘normalidade’ e melhorar a nossa ‘sanidade mental’, é no mínimo obsceno e no máximo abjecto.
Tentarmos apreciar a sorte que nos foi concedida, pelo que temos e que falta a tantos, no sentido de olharmos para o que é alegadamente importante, não resolve nada, só serve para mascarar sintomas e desvalorizar ainda mais as emoções. Em que é que isso beneficia alguém? Isso ajuda em quê?
Este receio colectivo de olhar para dentro do sofrimento que nos consome, esta fúria de querer impor bem-estar e felicidade a todo o custo, só nos leva a ficarmos mais longe de nós próprios e mais próximos do abismo. E há quem se deixe cair nele, pura e simplesmente, porque as expectativas são absurdas e irrealistas.
Agradecer haver sol, agradecer ter um tecto e comida, agradecer ter família, não me resolve automaticamente o que sinto, que se foi desenvolvendo durante dias e dias de intrincada dor. A depressão é uma doença grave e requer tratamento profissional. Achar que se resolve ou que melhora pela gratidão geral ao universo, é só estúpido, e leva a que quem não é capaz de o fazer se sinta ainda pior, ainda mais distante da realidade, ainda mais perdido na sua angústia, ainda mais incapaz de subir à tona, onde todos os ‘capazes’ flutuam alegremente, gratos e aparentemente resolvidos.
4- Agradece a tua má sorte, porque foi ela que te fez forte!
Ó máxima cruel e com requintes retorcidos de negação emocional!
Então é isto: a minha vida foi uma desgraça, abusada na infância, vilipendiada na juventude, humilhada e arrastada pelas ruas do preconceito ou da violência na idade adulta, mas tenho de agradecer este percurso de merda porque isso me tornou forte? E se vocês fossem chuchar num pano molhado?
É mais um apelo à conformidade e um desviar da atenção àquilo que realmente precisa de ser encarado e, se impossível de resolver, pelo menos compreendido.
Não somos fortes ou fracos apesar de ou por causa de. Aparentamos ser fortes, ou somos mesmo fracos, porque nos fechamos em copas e vivemos a ignorar os sentimentos, para não descambarmos de vez, pela ribanceira íngreme da nossa existência.
O que nos aconteceu de mau, o que nos fizeram de inominável, não é sinónimo da nossa identidade. O que conseguimos fazer com isso, no rescaldo do horror, também poderá não o ser.
A fonte da nossa força não vem do sofrimento que nos infligiram, nem das pedras aguçadas que nos atiraram. Se fizemos uma muralha com elas, isso simboliza a nossa fragilidade e nunca a nossa força.
A fonte da nossa força é termos vontade de superar, de entender, e termos a coragem de pedir ajuda, porque não somos capazes de o alcançar sozinhos.
Dizer que o sofrimento que nos impuseram nos fez fortes e devíamos estar gratos por isso, é uma falácia tão abjecta quanto ignorante. Fomos vítimas e ainda temos de agradecer por isso? Porque sobrevivemos, mesmo que pouco mais restem que farrapos e remendos andrajosos da nossa alma?
Esqueçam, e mandem, sem hesitação, à merda quem tiver a estúpida ousadia de vos dizer isso. Se for um terapeuta levantem-se e vão-se embora, saiam mesmo assim, sem pagar nem nada. Se for um médico, denunciem e façam queixa por escrito. Se for um parente ou um amigo, cortem relações, que isso não é amor nem amizade por ninguém.
Se forem vocês mesmos, entendam que não estão a ser realmente fortes: não há força sem encarar a fragilidade de que também somos feitos, e se disso forem capazes, a vocês o devem, e não à catadupa de merda que vos caiu em cima e da qual não tiveram culpa nenhuma.
5- Ser feliz ou não, não vem da tua gratidão!
Mentam isto na cachimónia. Gratidão não é mantra. É apenas boa educação. É um bom hábito de etiqueta social, que importa preservar e usar, e que não tem outro propósito que o de tratarmos os outros da mesma forma que gostamos de ser tratados.
Não é lema de vida – é só um gesto gentil que devolve a delicadeza que nos foi oferecida.
Não é uma terapia nem uma cura – para isso há os médicos, os enfermeiros e os terapeutas especializados, devidamente credenciados.
Não é um botão que se aperta e, de repente, a vida fica mais leve e mais resolvida.
Não é uma medida padrão pela qual encaixamos as nossas consciências e ajustamos o grau dos nossos desaires.
Não serve de nada tirarmos a limpo a lista sobre as coisas boas que temos a ‘abençoada sorte’ de ter na vida, se não fizermos o devido contraponto com aquilo que nos falta. Isso é só trabalho de auto-análise preguiçoso e malfeito.
Não adianta ficarmos contentes por termos bons tachos e panelas, e um fogão topo de gama, se a despensa e o frigorífico estão vazios – ficamos com fome na mesma.
Se isto parece um raciocínio muito simplista, é porque o é de facto. Porque não é preciso muito mais para desconstruir um conceito tão tosco.
Contudo, se vos aprazou, se vos trouxe mais-valia, se vos fez bem adoptarem para as vossas existências uma atitude generalista de gratidão, óptimo! By all means, carry on then! Que é como quem diz, força aí nisso, então!
Talvez as vossas consciências não precisassem de muito mais para se sentirem apaziguadas. Talvez os vossos problemas, afinal, até nem fossem assim tão complexos. Talvez a vossa infelicidade até fosse modesta e de fácil resolução.
Ou talvez vocês sejam todos uns grandes mentirosos, a fingir que ‘a vida é bela, nós é que damos cabo dela’, enquanto se entopem de antidepressivos e de outros inibidores de consciência, alguns em forma líquida.
Mas, ei! Nem tudo é mau! Pelo menos podem sentir-se gratos por viverem num país que dispensa antidepressivos e ansiolíticos como se fossem rebuçados, e onde o vinho é bom e barato!
Só não impinjam os vossos conceitos de zenitude existencial de meia-tigela pela garganta abaixo de toda a gente. Guardem-nos para vocês, e usem-nos como supositório. Ora aí têm um bom mantra.
Namastê.
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Bónus: as coisas por que estou grata! (o tão erroneamente citado Nietzsche estaria orgulhoso de mim!)
Eu estou grata apenas a mim. Tenho a maior gratidão por mim mesma. Mal-grado as minhas más, péssimas e desastrosas decisões. Não obstante as minhas qualidade e defeitos – sempre à bulha cá dentro –, as minhas fraquezas e derrotas – muitas –, as minhas acções corajosas – algumas – as minhas forças continuamente esgotadas e renovadas; tudo o que fiz de bom e de mau, deliberado ou inconsciente, que atraiu gente maravilhosa até mim, e repulsou os trastes.
Estou grata por ter esperança e resiliência nos dias bons, e por não me esquivar de me esconder do mundo, debaixo da minha almofada, nos dias maus.
Estou grata por ter conseguido olhar para mim e tentar compreender-me melhor, aceitar-me e respeitar-me mais. É um processo de recuos e avanços, que ainda está em curso.
Tudo o mais foram meros golpes de sorte ou azar, circunstanciais e imprevisíveis - não são da minha responsabilidade, e pelos quais nada tenho a agradecer. Não me formataram nem me condicionaram, nem me tornaram mais forte ou mais débil. Eu sou o que digo que sou. E amanhã poderei dizer outra coisa.
Manifesto Anti-Gratidão [Reel]