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Antagonismos – ou as coisas que me indispõem...

Para ventilar os pulmões e lavar os fígados de toxinas.

Antagonismos – ou as coisas que me indispõem...

Para ventilar os pulmões e lavar os fígados de toxinas.

Ana Bolena 2.jpg

O antagonismo que me traz aqui desta feita, ocorreu há uns dias atrás, quando, deslizando distraidamente pelo meu feed de Facebook, me deparo com um anúncio da RTP Play à série «Ana Bolena». A foto, que aqui coloco, cativou logo a minha atenção, e a minha curiosidade mórbida fez o resto.

Eu sabia que não devia. Sabia que a irritação era mais que certa, mas há a sempre a ínfima e tentadora esperança de até poder estar enganada e de me surpreender, ou pelo menos de encontrar quem pense como eu, em maior número que o costume. Falo, é claro, de ir ler os comentários.

Asneira grossa, quem me manda a mim ser curiosa? Um após o outro, sem nenhuma boa surpresa. Crítica intolerante e facciosa atrás de bojarda racista e capciosa. Sob o disfarce perfeito da alegada falta de rigor histórico, o público português discorreu com gosto e requintes de estupidez, deixando correr livre e solta a sua índole preconceituosa em observações de humor duvidoso e comparações de absurdez inquestionável.

Não tem mal que não se concorde, note-se. O que tem mal é ventilar apreciações imbecis e racistas a título de uma indignação exacerbada e desproporcionada. E é nesse ponto de ebulição que se me fervem os azeites e se me entorna o caldo – ou uma expressão idiomática do género.

No meio de tantas ervas daninhas de desinteligência e alarvidade, algumas apenas por falta de imaginação face a uma mera liberdade criativa, outras declaradamente preconceituosas, encontrei o comentário de uma pessoa – uma! – a defender o contrário. Essa pessoa forneceu alguns exemplos concretos de outras adaptações ficcionadas de figuras históricas de etnia não-caucasiana interpretadas por actores/actrizes caucasianos (mormente a Cleópatra de Elizabeth Taylor), e de como com isso todos coexistiram pacificamente sem qualquer reclamação nem algum ‘aqui-d’el-rei-que-me-assassinam-o-rigor-histórico’! Concordando com ela, respondi-lhe com o exemplo, bem próximo do tema, do actor Jonathan Rhys Meyers, que interpretou precisamente Henrique VIII na série The Tudors, colocando esta imagem ilustrativa. 

rei_henry_viii_-_jonathan_rhys_meyers.png

O chorrilho de argumentações cretinas com que fomos brindadas a seguir, foi tão insultuoso que a senhora, a dada altura, deve ter pensado que não estava para aturar tanta idiotice junta de uma só vez, e apagou o seu comentário. (Acto que lamentei, porque até me estava a divertir com os nomes que me chamaram, desde ignorante a “amante de americanices”, vá-se lá saber porquê, Os Tudors era uma série britânica, e da BBC, no less...)

Entre os comentários dos ardentes reclamantes (que podem ler no Facebook, caso tenham vontade de rir ou de chorar, dá para as duas coisas) contavam-se as seguintes pérolas:

O que seria o stress desta gente se se escolhesse um branco para fazer o papel de Nelson Mandela !!!” (com 800 e tal gostos)

“(...) ou ser um actor branco a fazer de Chaka Zulu!” – alguém respondeu ao de cima.

“(...) então porque não metem um actor negro a fazer de Hitler?

Afro???? Pelas barbas do profeta!!!!

Até em francês: “Ils n'ont tellement rien qu'ils s'approprient l'Histoire des autres. C'est vraiment la misère intellectuelle et Historique chez eux. - Têm tão pouco que se apropriam da história dos outros. É uma verdadeira miséria intelectual e histórica por parte deles.” – Eles?...

“Quero o Pepe Rapazote a fazer de Martin Luther King” – este cretino não sabe escrever Pêpê.

Esta inclusão politicamente correta e esta cultura woke já começa a cansar. Seria também ridículo colocar um ator branco a representar Mandela ou Martin Luther King.”

A rigor histórico, Ana bolena era branca… não entendo o porque não seguem a história! Nelson Mandela era negro, e portanto, jamais irão representá-lo com um ator branco. Esta situação de querer impor a todos, independente do fato histórico, atores negros, me faz sentir oprimida por ser branca…” – coitadinha, a opressão dos negros sobre o brancos tem sido realmente insuportável.

Já estão a ver o género. E o problema desta gente é que nem percebe que está a ser racista, de tal forma que o cabrão do preconceito nos está entranhado até nas pregas mais bem dobradas da nossa cultura. E conseguem mesmo pegar em conceitos desta época pródiga em etiquetar tudo (“esta cultura woke...”), para os usar deturpada e difamatoriamente como se fossem negacionistas a rejeitar a vacina contra a Covid-19.

Mas qual será a solução para a inclusão de actores pertencentes a minorias sem ofender o lirismo com que os brancos defendem o tão prezado rigor histórico?

Talvez a solução seja escrever mais papéis para actores negros, trans, gays, whatever. Ou talvez a solução seja tirarmos a cabeça do ânus, e começarmos a alargar a imaginação e a perspectiva, para além da História e dos preconceitos. Se calhar, começávamos todos a aprender qualquer coisa!

Creio que neste trágico dilema estão patentes dois conceitos fundamentais: a imaginação e a liberdade. Analisemos.

Comecemos pela imaginação. A imaginação é uma ferramenta prodigiosa e, como se sabe, ilimitada.

Acho que o que mais me chocou, para além de uma simples série de televisão poder ser um ultraje para tanta gente, foi a facilidade com que tantos recorreram ao mesmo palerma argumento do “Ai! Então e se fosse um branco a interpretar o Martin Luther King ou o Nelson Mandela?” Além de preconceituosos, pecam todos pela mesma falta de imaginação. Mas ainda assim, eu respondo.

A sério? É preciso ir por aí? Com a grande primazia que os brancos, hétero, cis (geralmente masculinos) têm sobre qualquer ponto de vista narrativo, desde sempre, até pintando a cara de preto ou colocando maquilhagem e disfarçando a voz grossa, precisamos mais disso? Já tivemos tudo isso, o que parece escapar a tanta gente pronta a condenar um pezinho em ramo negro numa dramatização histórica! Uma pesquisa rápida no google (black characters played by white actors – personagens negras interpretadas por actores brancos) devolveu cerca de 1 140 000 000 resultados (em 0,59 segundos) – embora para ser rigorosa, os resultados apresentados também incluem outras etnias, o que se calhar os torna ainda mais ilustrativos.

Sinceramente, não acredito que é mesmo preciso explicar isto, mas aqui vai: imaginem a personagem do Martin Luther King Jr., só o defensor mais icónico e célebre dos direitos civis (e humanos, é bom não esquecer) dos negros americanos – interpretado por um actor branco. Não faz simplesmente sentido e não se presta a qualquer devaneio interpretativo e artístico – que eu consiga imaginar, assim de repente, mas não coloco 100% fora de cogitação, tudo depende da imaginação (piscadela de olho) – pelo seu percurso de vida ser tão intrínseco e inseparável da sua cor de pele. Um homem negro a fazer o que ele fez, a dizer o que ele disse, no contexto espácio-temporal em que ele o fez, consagraram-no e tornaram-no num símbolo da história negra dos Estado Unidos – ou não tivesse ele sido assassinado precisamente por causa disso. Uma narrativa ficcionada que conte a sua história não poderá obliterar fácil e, quiçá, levianamente, o facto de que ele era negro e apenas uma pessoa negra (não necessariamente cis ou hétero) o poderá interpretar. Senão, era só um gajo branco a defender os direitos civis dos negros nos anos 60 – inusitado, mas longe de ser heróico. E quem diz Martin Luther King Jr., diz Malcolm X ou Nelson Mandela. Ou Rosa Parks, para dar um exemplo no feminino.

Será este o caso da Ana Bolena? Nem de perto nem de longe.

Uma narrativa, já a uma distância bastante razoável no tempo, que se centra sobre uma única personagem, onde o que é mais importante, acima até da acuidade histórica (ui, os professores de história a encolherem-se todos numa reacção cringe, e já a prepararem a indignada pena!), são as dinâmicas das interacções, são as elaboradas e secretas motivações das personagens, são as emoções veiculadas por elas! E isso não tem cor! Repitam comigo: as emoções NÃO TÊM COR!

E é aqui que entra a segunda face desta moeda problemática: a liberdade.

O que se fez com esta série, que não é inovador, e, espantem-se, nem sequer é woke, é o que se chama de liberdade criativa, que nem sempre se presta a tudo, é certo, mas, quando a Liberdade se alia à sua eterna parceira Imaginação, quase nada lhe é vedado.

Quando se retira um pedaço da História do seu contexto, assaz longínquo, como a relação da Ana Bolena e do Henrique VIII, enquadrando-o numa narrativa que gira em torno da sua relação íntima, o seu papel nos círculos do poder – estamos a descrever um novo contexto com diferentes interpretações, para lá das historicamente conhecidas e comprovadas. É apenas uma liberdade criativa! Claro que a Ana Bolena não era preta, não havia sequer a hipótese de ter existido uma rainha preta numa grande corte europeia do século XVI. Tal como o Henrique VIII não era magro e bonzão como o Jonathan Rhys Meyers, o actor que o interpretou na série The Tudors, de resto sem grandes sobressaltos nem reparos indignados por parte do público português (pelo menos do público feminino hétero, garanto)! Onde estava a vossa preocupação pela acuidade histórica nessa altura?

Gente: a ficção é feita para pegar num pedaço da realidade, de um modo que poderá ser mais, menos ou nada factual, e extrapolá-lo, narrativamente, até aos seus antípodas, se caso disso for. É a beleza da imaginação a trabalhar, e a imaginação, já disse, é prodigiosa; unida à liberdade, é infinita. Façam a conta: imaginação + liberdade = liberdade criativa.

Se ainda assim insistem na representação exacta e inalterada de qualquer facto real que alguma vez tenha ocorrido, então atirem a primeira pedra de condenação a todos os cineastas, pintores, escritores, encenadores, etc., que alguma vez ousaram inventar! Atirem, vá. Mas aviso já que não vão ter pedras que cheguem, e cultura ficaria infinitamente mais pobre.

Felizmente, existem vários exemplos onde o colour-blind casting, ou casting daltónico, se assim se pode designar (não terá sido sempre, sempre às cegas, por vezes foi mesmo deliberado), teve bem−sucedidos resultados: desde logo, a série da Netflix “Bridgerton”, o filme “A Tragédia de Macbeth”, inspirado na famosa peça de Shakespeare, interpretado pelo actor Denzel Whasington, e alguns outros, que geraram mais polémica, apesar de a cor da pessoa que interpreta a personagem ter relevância zero no curso da narrativa, como o caso da actriz Noma Dumezweni no papel de Hermione na peça Harry Potter and the Cursed Child (de 2016–18, peça de teatro escrita por Jack Thorne e baseada na famosa história de J.K. Rowling, onde em parte alguma se descreve a etnia da personagem), ou, mais recentemente, o malogrado caso d’ “A Pequena Sereia”, porque toda gente sabe que as sereias são brancas e loiras de olhos azuis, na loucura, verdes, vá!

A verdade é que quando se junta a racista fome com a machista vontade de comer, a coisa fica ainda mais refinada. Como disse a actriz Lashana Lynch, a propósito das críticas recebidas pelo seu papel como a seguinte agente 007 (no filme “007: Sem Tempo para Morrer”), “o mundo tem de parar de agir como se isso fosse uma coisa moderna, como se as pessoas negras tivessem acabado de chegar ao planeta”. A objecção a esta escolha narrativa foi não só ser uma personagem negra como ainda por cima (uma desgraça nunca vem só), mulher! Mas esta nuance retorcida de intolerância é demasiado sumarenta e requer um Antagonismo inteiro só para si. De patriarcados e feminismos falaremos noutra oportunidade.

Se, realmente, no fim de tudo isto, não vos consegui convencer – ou falhei redondamente na assertividade e articulação do meu discurso, ou, atentem nesta hipótese, vocês não passam de bestas racistas. Se for esta última o caso, unfollow now, please. Muito obrigada.

Se se sentiram questionados e até vos pus a pensar, mas mesmo assim acham que a série é uma pessegada sem nexo, também têm um excelente remédio: exerçam o vosso pleno direito de fazerem escolhas livres e não a vejam. Fácil, não? E sem necessidade nenhuma de irem para as redes destilar ódio em observações jocosas, tendo ainda a lata de afirmar que não são racistas.

Porque, no fim de contas, tudo se resume a uma sacra e inviolável premissa: não gosta, não vê. A este tipo de portuguesinhos manhosos, que aproveitam logo, ao melhor estilo do chico-espertismo, para regurgitarem a sua indigesta intolerância ao mínimo pretexto, dá-me vontade de dizer apenas uma coisa: vão antes ver as novelas da TVI!

 

 

Nota: a série já não está disponível na RTP-Play.

 

 

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