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Antagonismos – ou as coisas que me indispõem...

Para ventilar os pulmões e lavar os fígados de toxinas.

Antagonismos – ou as coisas que me indispõem...

Para ventilar os pulmões e lavar os fígados de toxinas.

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Depois de ver de um certo clip de uma certa rádio sobre o dia da mãe, senti-me um tanto ou quanto cringe, que é como quem diz, fiquei com um sentimento confuso de vergonha alheia ou de uma aversão que faz uma pessoa retrair-se como se tivesse cócegas nos dentes.

Nele, entre as várias coisas que agradecem à mãe, três marmanjões – entenda-se, adultos – fazem referência também às inúmeras maravilhas que a mãe personifica todos os dias, nomeadamente a de ser quem, depois do trabalho, “ainda trata do jantar”.

Não, gente. Ça vas pas. Em pleno século 21, agradecer à(s) mãe(s) como se estivéssemos nos anos 50 do século passado, já não dá para engolir. Daí as cócegas nos dentes...

É claro que as criancinhas pequenas não podem desenrascar-se sozinhas e precisam que a mãe – e/ou o pai, ou algum ente que os valham – façam por eles todas as tarefas fundamentais para suprir as suas necessidades básicas. Só para que não haja dúvidas, não é aos moços piquenos (adorável regionalismo de Paredes de Coura) que eu me refiro, mas sim a gente adulta e formada, que devia pensar duas ou três vezes antes de vir a público com mensagens retrógradas. Imagino que a intenção seria boa e visava a cantiga ser apenas ilustrativa. Mas se há tantos gestos e predicados maternos a exaltar, é triste que se escolha algo que se, apesar de tudo, ainda ilustra algumas realidades, não o deveria fazer.

“Mas é só uma cançoneta sem maldade e que até entretém, para que é essa amofinação toda agora? Ainda por cima o dia da mãe já passou, que mania a tua” dirão os meus fiéis leitores – obrigada, desde já aos dois...

Primeiro: não escrevi isto no dia da mãe, porque não tive tempo.

Segundo: quem não se sente, não é filho de boa gente, expressão idiomática muito verdadeira e que vem não só a propósito mas está em perfeita consonância com a temática. Fiz uma jura a mim mesma, há já alguns anos, que nunca mais assistiria passivamente – ou pelo menos tentaria - a nada que considerasse intrinsecamente errado. Claro que há vários graus de errado, muitos serão, quiçá, bem mais prementes do que este. Admito que sim – e lá chegarei, a seu tempo. Mas depois das cócegas nos dentes, vem a irritação na garganta, e pronto, instalou-se a alergia às imbecilidades antiquadas, que como se sabe, vêm carregadas de mofo e pó, e já não fui a tempo do anti-histamínico. Além disso o blog é meu, eu escrevo sobre o que eu quiser!

Não é errado agradecer à mãe por tudo o que ela faz pelos filhos, mas é preciso que se agradeçam as coisas certas e pelos motivos certos.

Não agradeçam à mãe por limpar, lavar, passar, cozinhar, etc., depois de um dia de trabalho. Isso não é nada pelo que estar grato, mas sim tudo para se estar indignado. Em vez de agradecer, deixem de assumir que isso está “incluído no pacote” da sua condição de mãe – como a cicatriz da cesariana ou as ancas alargadas, seus cabeçudos! Mesmo que possa fazer parte do seu dia−a−dia. Em vez disso, façam a vossa parte, e digam-lhe para parar de fazer a de todos - caso ela ainda não vos tenha mandado todos à fava...

Ser mãe não é ser empregada doméstica de ninguém. Isso é uma profissão paga e que, agora e bem, até é crime se não for declarada.

Agradecer à mãe pelo trabalho em casa é quase o equivalente ao patrão explorador agradecer aos funcionários pelas horas extra de trabalho que nunca lhes pagará.

A menos que venha acompanhado de um cheque chorudo, metam o vosso “obrigado, mãe” onde o sol não brilha.

O dia da mãe – e também o do pai, com certeza - pode ser um dia de reconhecimento, sim, mas de tudo em extra – extra-mimo, extra-atenções, extra-respeito, extra-etc. E não o único dia do ano em que a malta se lembra que tem mãe. E ainda por cima, lhe agradece por ser a sua criada pessoal.

O perfume ou as flores, e o pequeno-almoço na cama são giros, mas só se no resto do ano todos em casa fazem a sua parte, sem assumir que é à mãe que cabe todas as tarefas.

Já é tempo de deixarmos cair este tipo de estereótipos ultrapassados em vez de os perpetuarmos, por muito castiços que fiquem nas letras das paródias, radiofónicas ou outras.

Já é tempo de adoptar outro discurso, nestes dias marcados no calendário bem como nos outros todos, que o da mãe que é santa sem altar e vela pelo lar, ou o do pai-herói, que labuta sem descanso para prover à família. Chavões bafientos destes só conduzem a mais do mesmo e não servem de exemplo a ninguém. [E já nem sequer falo da hipócrita duplicidade de valores de gente (muita dela mulheres, eu sei) que elogia em barda o pai/marido/homem que, só porque estendeu a roupa ou penteia a menina antes de a levar à escola, é logo mimado com uns “que sensibilidade, que jóia de pessoa!”, e a mãe/esposa/mulher, que faz todas essas merdas desde sempre, nem um pequenito sobrolho de espanto consegue erguer! – isto é pano que dá para muitas mangas de «Antagonismos», e eu não tenho vagar para costurar tanto...]

Já é tempo de mostrarmos às futuras mães que não é isto que se espera delas – se é que é da conta de alguém esperar seja o que for. Nem delas, nem dos futuros pais, nem de ninguém em particular, mas antes de todos em geral.

Não quero que a minha filha, no dia da mãe, me agradeça por lhe lavar a roupa - não lha lavo, ela já aprendeu a fazê-lo -, ou por lhe cozinhar o jantar todas as noites – não o cozinho, pelo menos não em todas, e há já algum tempo que ela reformulou a pergunta “o que vais fazer hoje para o jantar?” para “vais fazer jantar hoje ou posso cozinhar o que eu quiser?” – ou por lhe passar a roupa a ferro – ela sabe onde estão a tábua e o ferro de engomar -, ou por limpar a casa, que se ela ajuda a sujar, também ajuda a limpar.

Estou a educá-la (pelo menos, tento) não só para ser autónoma, mas também para nunca permitir que ninguém, seja quem for, assuma que seja ela a fazer as tarefas domésticas só porque é mãe, e muito menos só porque é mulher.

Não quero que ela me agradeça coisa alguma, sequer. Dela só pretendo o seu amor e o seu respeito que – espantem-se os puristas – não têm de ser automáticos: um, se foi natural, pode ser perdido facilmente; e o outro deve ser conquistado, pelo exemplo.

Comigo, ela sabe que pode contar para tudo: para a ouvir, para a cuidar, para lhe explicar, para a aconselhar, para a educar. Para a abraçar e acarinhar. Para lhe ralhar, quando é preciso. Para lhe pedir desculpa, quando calha ser eu a errar (muito raramente...). Para saber a sua opinião. Para rir. Para chorar. Para lhe dar espaço, quando faz falta, ou tirar-lho quando for imperioso.

Tudo.

Menos para ser sua criada.

Porque contar com a mãe para isso, hoje em dia, é como contar com o ovo no cu da galinha: às tantas sai outra coisa...