Amiga inútil
Os anos que vou acumulando parecem servir-me cada vez menos para compreender as criaturas humanas. Sei que não sou exemplo para ninguém – não é preciso hastearam já o pelourinho, que esta infractora fustiga-se sozinha! – mas há coisas que não sou capaz de entender, e que nunca, por mais anos que viva, serei capaz de fazer.
Isto poderia ser um prólogo para inúmeros tópicos, mas do que quero falar hoje é de um sobre o qual sei – aparentemente – cada vez menos! Ainda assim, há duas ou três coisas que tenho por certas quando falo de Amizade.
Tenho sinceras dificuldades em entender as pessoas – ponto assente desde o início. Estudo, observo, esforço-me. Mas há sempre algo que me escapa, e, por conseguinte, as pessoas também.
Deparo-me com frequência com um modelo de amizade e convivência social mais estreita, que tem por base o utilitarismo. Passo a explicar: gente que se interessa e cultiva laços afectivos por outra gente, na medida certa do que podem fazer umas gentes pelas outras.
Não estou a falar de solidariedade nem de entreajuda – que são louváveis e salutares. Refiro-me a uma visão utilitária do outro, em que um amigo só o é de facto se for útil. A ideia é mais ou menos esta: se eu faço coisas por ti, tu farás coisas por mim, uma mão lava a outra, e as duas dão um highfive por se darem tão bem e serem amigas tão dedicadas. É como se a prova de que se é amigo de verdade tivesse de ser concretamente mensurável pelo número de favores e gestos de ajuda prática que se fazem, e que devem ser reconhecidos por efusivos agradecimentos, sempre que recebidos.
E tudo até poderia correr lindamente na santa paz de cristo, não fosse a definição de ajuda que alguns exemplares humanos têm no seu dicionário de bolso da vida. Ou seja, o conceito de amigo-útil é já de si questionável e perverso o bastante, sem adicionarmos o que algumas pessoas entendem por ajudar.
“Mas então” – dirão vocês – “os amigos que não se ajudam é porque não querem saber uns dos outros!”.
É claro que os amigos se ajudam! São, sempre que não lhes seja humanamente impossível, os primeiros a saltar para a linha da frente e apoiar no combate, seja este qual for no momento.
E é claro que podem fazer favores – e fá-lo-ão com agrado, dando o seu melhor no que lhes for pedido.
Mas partir do princípio básico que é para isso que servem, é, como já o disse e bem o Miguel Esteves Cardoso, não perceber nada de amizade. A amizade não serve para nada. Serve para ser o que é: um fim em si mesma, e não um meio para um fim. E muito menos servirá para cobrar do outro algo que ele poderá não ser capaz de dar, por diversas razões que nos podem ultrapassar, e nem serão sequer da nossa metediça conta saber!
O que eu quero do meu amigo é que ele o seja. Que goste de mim, que me dê sempre o abraço mais acolhedor, que me ofereça, sempre que puder, o seu ouvido atento. E vá, um café ou outro de quando em vez também não cai mal. De resto, não serve rigorosamente para mais nada e eu não preciso dele para mais coisa alguma. Porque o que se dá em amizade é só isto que já é tudo.
Em calhando esse amigo meu de ser muito empreendedor e não conseguir de todo resistir a tomar a iniciativa de me ajudar – porque me quer ver mais feliz, e isso está, acha, ao seu alcance fácil, porque tem necessidade extrema de fazer o bem ainda que olhe a quem, whatever... – mais vale que pergunte com simplicidade “o que posso fazer para te ajudar, se é que posso fazer alguma coisa?” do que atirar-se de cabeça numa pseudo-ajuda, que apenas fez sentido na sua mente brilhante, mas que de facto não ajuda ninguém.
Ilustremos.
Imaginemos que eu preciso de um descascador de batatas mas não sei como o conseguir, e falo sobre isso ao meu amigo. Não lhe pedi nada, apenas ele fica a saber que um descascador de batatas é uma coisa que me facilitaria muito a vida.
Vai daí, diligente como só ele, arranjou-me uma formidável forma para pudins! Eu fico, nitidamente, confusa e desconcertada, e pergunto-lhe para quê, o que farei eu com uma forma de pudins, se eu nem sei fazer pudins - e nem sequer gosto de os comer?!
- Ai isso não sei! Isso é lá contigo! Não querias um descascador? Pronto, consegui-te uma forma de pudins!
- Mas são coisas completamente diferentes...
- São ambos utensílios de cozinha!
- Mas ... eu não sei fazer pudins...
- Aprende! És tão prendada!
Depois de explicar com muita delicadeza que a forma de pudins, embora muito fantástica e sofisticada, não me é útil para nada, o amigo sente o peso desse passo em falso. Contudo, não se sente responsável por ele: pelo contrário, responsabiliza-me a mim! Sente que eu é que sou uma amiga ingrata, que não sabe reconhecer - e muito menos agradecer - uma boa ajuda quando a recebe!
A analogia é pateta, admito, mas o seu significado não. Isto acontece na realidade – talvez não tanto com utensílios culinários - e não deveria acontecer de todo. Porque, como escreveu o MEC, «Se alguém “falta” ou “não corresponde”, se não cumpre as obrigações contratuais, é logo condenado como “mau” amigo e sumariamente proscrito.»
Se para se ser um amigo, é preciso manter uma conta corrente actualizada de “ter e haver”, isso não é amizade, é contabilidade! Mais vale contratar um contabilista, que gasta menos os nervos do que gerir expectativas sensíveis!
Meus amigos. Contem comigo para rir, para chorar, para vos ouvir carpir mágoas de amor e de dor de corno às 3 da manhã, para tomar café na esplanada às 3 da tarde – mas não contem comigo para isto. Porque eu não passo de uma amiga inútil.