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Antagonismos – ou as coisas que me indispõem...

Para ventilar os pulmões e lavar os fígados de toxinas.

Antagonismos – ou as coisas que me indispõem...

Para ventilar os pulmões e lavar os fígados de toxinas.

15 Nov, 2023

Amar à parva

 

E

Desconfio sempre de pessoas que dizem “amo-te”, assim, sem mais nem menos, com toda a displicência e facilidade.

Falar de amor com tal cómoda ligeireza significa, quanto a mim, que geralmente não se sente amor algum.

Porque dizer “amo-te” arranha na garganta. É um longo percurso que a voz tem de fazer para transportar as palavras desde o fundo da alma e trazê-las até à superfície articulada dos lábios. Por isso que às vezes soam fracas, o som sai debilitado do esforço.

Quem se habitua a fazê-lo com regularidade, facilita o processo, é certo. Mas desvirtua impreterivelmente o impacto e o poder intenso do seu significado. E, inevitavelmente, este vai-se diluindo, vai-se enfraquecendo, até se perder e não restar nada do precioso sentimento original a não ser um termo giro, que está na moda dizer à-propos de tudo e nada.

Eu nunca disse (com muita pena minha) ao meu pai que o amava, e à minha mãe só o consegui dizer uma vez. À minha filha consigo, felizmente, dizê-lo com alguma regularidade, mas a voz dói sempre um bocadinho ao sair, e é por isso que me é difícil dizer-lho sem as lágrimas me aflorarem os olhos.

Cada um sabe a medida do amor que sente. Cada um sabe a regularidade que lhe é mais propícia de o proferir.

Mas sinto que quando fazemos algo muitas vezes seguidas só porque sim, sem a ficha da inspiração do momento adequadamente inserida na tomada do sentimento, há um curto-circuito, e a luz não se liga.

O que era especial não passa agora de uma banal legenda sob uma foto de uma sobremesa ou de um par de sapatos publicada no Instagram.

Não desbaratemos uma palavra de valor tão incalculável! Até porque nem tudo é passível de ser amado.

Amamos gente, pessoas que conhecemos há bem mais do que meia-hora, e que não nos conhecem só de ontem!

Amamos a arte, uma música, uma pintura, um poema, um livro, uma escultura, uma noite no teatro, um filme no sofá.

Amamos os animais que acolhemos nas nossas vidas e que nos são tão ou mais família que muitos animais humanos com os quais partilhamos ADN.

Amamos uma paisagem, uma árvore, um rio, a praia orlada de mar azul, a chuva na terra quente do Verão, o sol débil nas manhãs de Outono.

Amamos a casa da nossa infância, a rua onde fizemos os primeiros amigos, a cidade que nos viu crescer.

Podemos amar objectos? Creio que o que amamos são as recordações que estes nos dão dos momentos na nossa história de vida, mas se se perderem ou se se danificarem, tarde ou cedo percebemos que o amor que simbolizavam permanece, e que nunca careceu de qualquer representação física.

Adequemos as justas palavras aos justos sentimentos:

 - não, não amas essa fatia de bolo de chocolate – gostas é muito pelo bem que te sabe, embora admita que alguns exemplares possam estar muito perto de uma sublime obra de arte, logo dignos de serem amados...

 - não, não amas essa camisola ou esse lenço, gostas só bastante, é confortável ou dá com tudo;

 - não, não amas aquele relógio ou este carro, nem o chapéu, nem o batom, nem esta pulseira, nem aquele armário, nem mesmo a tua airfryer!

Gostas tanto que, na loucura, até adoras! Mas amar? Não pá, isso é outra coisa. Não é outra liga, é toda uma outra modalidade.

Se banalizamos a frequência e o destino da aplicação de um “eu amo”, o seu valor perde-se e tragicamente deixa de fazer sentido – e nós deixamos de o sentir, o que é ainda mais trágico. E muito parvo...

 

«Amar à parva» reel

 

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