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Antagonismos – ou as coisas que me indispõem...

Para ventilar os pulmões e lavar os fígados de toxinas.

Antagonismos – ou as coisas que me indispõem...

Para ventilar os pulmões e lavar os fígados de toxinas.

Foto de Joseph Etchingham no Pexels:

Estou a ficar farta de ver e ler, nessas comunicações situacionais e ordinárias que por aí abundam (leia-se memes), sempre o mesmo lema, uma e outra vez o mesmo mote, apregoado vezes sem conta, mais ou menos nestes moldes: “sofres, mas aprendes; com a dor no coração, fica a eterna lição!”. Rima (calhou...), mas não é verdade, pelo menos quanto a mim.

O conceito irrita-me e discordo dele em absoluto. Não se aprende nada com a dor, nada que valha a pena aprender. Com ela só regredimos e desaprendemos.

A prova está nos tantos milhões que sofreram o inominável e o infligiram de volta assim que lhes foi possível.

“Ah e tal” – dirão – “e então os tantos outros milhões que não o fizeram?”

Esses dividem-se em dois grandes grupos: os que se metamorfosearam, vulgo aprenderam a dita lição, tornando-se em criaturas orgulhosamente sós e confiantemente desconfiadas, e os que se mantiveram incólumes, feridos mas não permanentemente danificados. E estes últimos é que são a verdadeira e excepcionalíssima excepção (sublime-se a sublime redundância) à estúpida e cretina maioria. De facto, a maioria das pessoas, quando as encontra, classifica-as de otários. E nada poderia estar mais longe da verdade.

São seres absolutamente extraordinários porque aprenderam a verdadeira lição a aprender. Aprenderam que o mais importante é – apesar de todo o sofrimento – não se deixar de ser quem era. Aprenderam que a Lição não é passar a ser desconfiado, céptico, ou até apenas tolerante mas de olho vivo; não é não permitir a mais ninguém sequer o ínfimo vislumbre da verdadeira personalidade, fechada a sete chaves no alto de uma torre qual frágil donzela de contos de fada; não é ser-se incapaz de estabelecer novos afectos sem uma extensa e morosa fase de pré-teste que valide o investimento, embora se reserve uma caução de suspeita permanente, à laia de seguro contra fraudes. Não. Estas não são a Lição.

A Lição é apenas – apenas... – depois de sofrer, depois de carpir a dor por todos os poros, não permitir que seja ela a vencer, não permitir que seja ela que nos define. Não lhe permitir a satisfação, além de tudo o resto, de nos ter também mudado. E isto é tão difícil quão raro de se conseguir, daí o exorbitante brilho de excepcionalidade que ilumina estes seres extraordinários – exíguos e indevidamente desvalorizados.

A Lição é seguir em frente a ser quem somos, fiéis a nós próprios: se éramos complacentes, assim permaneçamos; se éramos confiáveis, assim nos mantenhamos; se ofertávamos o benefício da dúvida, não o retiraremos; se éramos capazes de confiar, confiemos.

“Mas és estúpida ou quê?” – dirão. “Depois de sermos enganados e desapontados, é suposto não nos resguardarmos, mas continuar a dar o corpo às balas como uns perfeitos totós? Para continuarmos a ser feitos gato-sapato?”

Sim. É exactamente isso. Porque os estúpidos são eles, no fim de contas, os que ultrajam, mentem, traem, atacam, sem qualquer remorso nem piedade. Se pensam que auferiram enorme vantagem, se se consideram assim tão espertos, se acreditam que ninguém os vence – estão derrotados à partida. Deixá-los entregues a si próprios, que mais não são que pseudo-gente.

A grande Lição da Vida não está em retrairmo-nos após a traição que nos perpetraram e a dor que nos impuseram, nem em erguermos gigantescas muralhas de resistência pós-apocalíptica, depois do assalto ao indulgente castelo da boa-vontade: está em mantermo-nos verdadeiros e prontos a acreditar de novo, sem reservas. Prontos a confiar outra vez, sem precauções.

Quantos de nós aprenderam esta Lição?

Eu não, desde logo. Eu aprendi a “outra”, a que apregoam como sendo oriunda das próprias mãos da Vida, que no-la entrega numa valente bofetada na tromba. “Aquela” que, dizem os arautos modernos da filosofia de pacotilha, nos leva a ser “espertos” e a saber de antemão que ninguém é de confiança e muito menos digno da nossa dedicação instantânea. A “tal” que, quando damos conta, nos deixou isolados numa gaiola que não só não nos protege, como nos acabou por deixar prisioneiros da nossa própria insegurança. A que nos ensinou a sermos outras pessoas completamente diferentes, por vezes tão desprezíveis quanto as que contra nós atentaram.

E o grande problema é que não podemos aprender de novo. Uma vez aprendida a lição errada, já não podemos fazer reset ao sistema e aprender a correcta. Porque o sistema já está viciado, e já não há debug que o valha. Se foi o errado que aprendemos, já não podemos voltar a atrás e fazer o certo.

Porque já nos tornámos cínicos, desconfiados, já erguemos cerradas fileiras intransponíveis, já avançámos com tudo ao mínimo sinal de potencial ameaça. Já nos rendemos à desumanidade.

E agora é tarde. É tarde para prevenir, para evitar a inalienável realidade: o pior ataque vem sempre de dentro.

 

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