A família incerta
Na minha formação académica em sociologia, aprendi muitos conceitos relacionados com a família e as suas dinâmicas. Talvez as mais conhecidas teorias sejam as de Louis Roussel, à volta do conceito da família em transformação, empurrada e pressionada por todos os lados pelas consequências das mudanças na sociedade desde a revolução industrial (essa grande mãe de todas as mutações sociais mais profundas e cujos efeitos ainda se replicam, como um seixo aos saltinhos atirado na lagoa da eternidade). Roussel falava da queda do tradicional modelo da família nuclear, enquanto modelo típico, numa sociedade em transformação, e a sua noção de família incerta provém do surgimento de novos conceitos da família – com o seu célebre adágio “os teus, os meus e os nossos” a ilustrar o enquadramento. As inovações tecnológicas e científicas, a entrada e progressão da mulher no mercado de trabalho, as novas formas de organização do trabalho, as alterações na legislação referente ao casamento e divórcio, a emersão e determinação da garantia dos direitos e liberdades civis e humanos, mormente da identidade sexual e de género, a interacção crescente entre o domínio político-económico e a dimensão social, são apenas algumas das causas/efeitos, intermutáveis muitas vezes, que contribuíram para a transformação da família e do seu conceito, outrora muito mais restrito e rígido.
Respirem fundo: não é uma dissertação sociológica que aqui vos apresento, não fui uma aluna assim tão boa. Relaxem os músculos e recostem-se novamente. Esse dedo pronto ao swipe quietinho aí.
A (r)evolução continuou, e já não são realmente novas para ninguém as várias formas de organização familiar que pululam por essas sociedades modernas afora: monoparentais, alargadas, casais do mesmo sexo, filhos adoptivos, etc.
O significado emocional de família é que, talvez, se tenha mantido mais ou menos inalterado, ao longo dos tempos. Haverá uma meia-dúzia de ideias sobre a essência e significação da família que, mais ou menos, todos partilhamos. Pelo menos em teoria. A prática hodierna é que poderá ser muito diferente.
Do social global ao individual pessoal: eu sou da velha-guarda. Eu sou de estar lá com tudo, quando tudo corre sobre rodas e quando se fica na mó de baixo; quando há festejo e fogo−de−artifício, e quando o pesar carece de companhia silenciosa – ou até respeitosamente distanciada, aguardando na retaguarda. Na mesma medida, tomo as dores dos meus por minhas, e, se falta fizer, ando à porra e à massa com quem os ofendeu. Primeiro defendo, depois pergunto porquê. E para mim, isto é ser família. Se nada disto acontece reciprocamente, é porque o laço familiar é brando e fraco demais para se manter atado.
Família não é quem nunca decepciona – família é quem nunca desiste de tentar emendar, de pedir desculpa. Todos erramos, todos perdemos a razão de vez em quando: mais importante que perdoar – que não resulta sempre de uma escolha puramente voluntária –, é saber pedir perdão.
Família é quem apoia, quem celebra, quem lança os foguetes e apanha as canas, quem faz a festa toda com fanfarra e zés pereiras para comemorar o nosso desfile - mesmo que ainda não seja de vitória certa.
Ser família é ser clã: cerrado, inexpugnável, mexeu com um, leva nas trombas de todos.
Contudo, ser família não é sempre, nem exclusivamente, partilhar ADN: há pessoas que são família por direito adquirido, e são-no mais do que muitos familiares, alguns directos até. Porque ser família não tem de estar na massa do sangue, mas no molde de que é feito cada coração, na pele das mãos que se unem na partilha.
Na família cabe tudo o que somos e podemos ser, sem restrições. Cabe o que temos e o que desejamos ter, sem prejuízo pelo que perdemos já. Cabe o respeito intrínseco e o valorizar reiterado, sem subserviência e sem tomar nada por garantido.
Cabe acima de tudo, o que mais gostamos – requisitos básicos para se ser família.
Quanto a mim, os meus gostos não são, creio, muito complicados.
Gosto do que me faz feliz. Do que me prende à alma, do que me preenche, do que me acrescenta.
Gosto do que me faz rir sem controlo, sem censura, sem comedimento, sem contar. E que, em igual medida, me permite chorar.
Gosto do que surpreende com afecto, do que me acarinha mesmo em ausência, do que me sabe os pontos fracos e os protege – para que ninguém mais mos descubra.
Gosto do que seja feito tanto de longas conversas quanto de silêncios acolhedores – e de perder a noção do tempo com qualquer um deles.
Gosto da pertença, da certeza, da lealdade, impermeáveis a todas as tempestades, incólumes a todas as rugas do tempo.
Por isso, na minha família estão incluídos os amigos de sempre e para sempre – que se contam pelos dedos de uma mão e ainda sobram dedos. É uma família incerta, tão assimétrica quanto imprescindível: todos adoptivos, todos diferentes, todos complexos e transparentes, de tino duvidoso, de assiduidade de contacto caprichosa, mas de amor eterno.
Se não há um check em todos os requisitos, é provável que não seja da minha família. Ainda que comigo partilhe ADN...