Ser ficção
Deambulando pelas páginas do Sapo Blogs há uns dias, deparei-me com um título que me chamou a atenção: CRISE NA FICÇÃO PORTUGUESA. Como escritora de ficção que me considero ser, alarmei-me e fui ler.
Ruminei a informação durante dias, tentando chegar a uma opinião, que me custou a discernir pelo amargo de boca que o artigo me deixou. À partida, discordei prontamente, rosnando imprecações contra aquele título fatalista. Quis que aquele artigo não estivesse certo e que a sua autora estivesse enganada. Mas só porque queremos muito que alguém não tenha razão, não significa que a não tenha.
Poderá ser verdade? Poderá a ficção portuguesa estar em flagrante declínio? E o que mais me acutila o ego, será a minha ficção mais um exemplo disso? Poderá o silêncio das inúmeras editoras a quem enviei os meus manuscritos ser o reflexo da minha evidente mediocridade?
Estava já pronta a enfiar a carapuça na minha cabeça dramática e insegura, quando pausei e respirei fundo: a minha eventual mediocridade literária não condena a ficção portuguesa inteira ao fracasso, por isso, Ego, menos. “Calma, jovem” – diria a voz da tomada de noção da Joana Marques.
Mas a consciência ainda assim não se aligeirou, logo era óbvio que a opinião não estava consolidada. E se calhar ainda não está, inteiramente. Mas há umas quantas coisas que se me oferece dizer sobre o assunto. E pronto, aqui estou eu perante mais um antagonismo que não posso, embora talvez devesse, ignorar.
Não tenho pretensões de saber ou alegar que sei mais do que quem trabalha no meio há provavelmente mais anos do que eu escrevo. É evidente que não sei. E é evidente também que não conheço a fundo os meandros nem os m.o. das editoras tradicionais portuguesas. Mas lido com os seus resultados, e no meio em que me movo há umas quantas evidências que, se não contrariam a enfática sentença desse artigo, pelo menos a colocam muito em causa.
Mas vamos por partes.
Opinião.
Não creio que haja uma crise na ficção portuguesa. Declarar tal vaticínio é demasiado categórico e circunscrito para uma área tão extensa. Por muito que se queira, o Rossio não cabe na Betesga.
O que me parece que existe é uma crise no sistema editorial tradicional em Portugal. Estático, rígido talvez, continua a persistir no mesmo modelo de publicação. Não se atreve, não ousa desbravar novos caminhos. Percebe-se porquê. O mercado português é pequeno e, dizem, rende pouco. Aventurar por mares literários nunca navegados é uma empresa perigosa. É preferível continuar a fazer apostas seguras a arriscar em novos talentos.
Mas quanto rende ao certo?
Factos.
Segundo a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), em 2023 venderam-se 13.176.303 livros, ou seja, mais 3,6% do que em 2022. Do total de livros vendidos, 13.264 foram novidades editoriais, ou seja, cerca de 0,1%. Não há dados, que eu tenha conseguido apurar, se nestas novidades se incluem autores inéditos.
Em 2023, a facturação global do mercado livreiro foi de 187,2 milhões de euros, o que representou um aumento de 7% face a 2022, cujas vendas somaram os 175 milhões de euros.
Não obstante estes aumentos, a APEL considera que o crescimento foi menor que em 2021 e 2022, pelo que afirma existir “a necessidade de resolver muitas das fragilidades quer do sector editorial quer do sector livreiro”.
A distribuição das vendas foi de 34,1% para o segmento infanto-juvenil, 32,3% para o da ficção e 30,2% para o da não-ficção. Em termos de facturação, o segmento mais lucrativo foi o da ficção (37,3%), seguido pelo da não-ficção (35,5%) e o infanto-juvenil (26,3%), que se explica pelo preço dos livros.
De acordo com a APEL, 2023 terminou com “um trimestre de evolução favorável no mercado, tanto em volume como em valor”. De Outubro a Dezembro, época de vendas natalícias, registaram-se 63,1 milhões de euros de vendas, ou seja, um aumento de 7,3% face ao período homólogo de 2022.
Na época de vendas considerada natalícia, venderam-se 4,2 milhões de livros, dos quais 2830 foram considerados livros novos. Atentem: em 4 milhões de livros vendidos, na época do ano mais alta em vendas, só cerca de 0,07% foram livros novos. Livros novos – não necessariamente autores novos.
Parece-vos que isto espelha uma vontade editorial em apostar na renovação literária em Portugal? A mim também não. É porque não há bons livros novos de autores novos em Portugal? Não sei o que vocês acham, mas a mim parece-me que também não.
Evidências.
O que não falta por aí é muito quem escreva boa ficção. Eu bem o sei – e não me refiro ao Eu escritora, mas ao Eu leitora. Leio-os todos os dias nos blogues, nas redes sociais, nas newsletters literárias que subscrevo: autores já publicados alguns, outros não, outros que se autopublicaram. Todos a produzir com consistente qualidade, estão vivos e recomendam-se.
Mas porque é que ninguém os conhece? Ou, pelo menos, porque são tão pouco conhecidos?
Porque não povoam os escaparates das livrarias em Portugal, onde pululam livros de ficção estrangeiros (nada contra, também os há muito bons), de autores portugueses já consagrados (que também têm direito a continuar a sua carreira, como é evidente), de autores-estrelas (o mediatismo das celebridades tem de ter o devido destaque, pois claro!), e de reedições de autores clássicos (paz às suas brilhantes almas literárias, mas quantas mais edições d’Os Maias serão precisas...).
À minha vista desarmada e, admito, eventualmente desinformada, é este o cenário editorial em Portugal.
Efeitos.
Assim, se as editoras continuarem apenas a publicar o que lhes dá uma maior e mais segura margem de lucro, a pesquisar pouco ou nada autores inéditos – sem realmente inovarem nas formas de os descobrir e sem o fazerem proactivamente –, a preterir a qualidade em prol da popularidade, estarão a fomentar, senão mesmo a formatar, um mercado sobre o qual se queixam depois de ser pouco interessante e medíocre, tanto a montante quanto a jusante – ou seja, tanto do lado dos escritores como dos leitores.
Quanto aos leitores não sei, mas os escritores cansam-se. Não há oportunidades suficientes. Não há formas de se ser dignamente avaliado numa editora tradicional – nem formas de saber se se chegou sequer a ser lido. Logo, as editoras independentes surgem e multiplicam-se mais do que cogumelos. E tal como os saborosos fungos, há-as para todos os gostos e para todos os bolsos.
O que lá não abundam são editores experientes, criteriosos e isentos para trabalharem a obra com o autor. Esses estão todos – ou quase todos – nas editoras tradicionais, a lamentar-se de não lhes chegarem às mãos e aos olhos manuscritos inéditos dignos de serem publicados. Mas asseguro-vos, eles existem – os editores é que não os encontram, e muito menos os procuram.
Alegações finais.
Não é um sector fácil – já o sabemos todos. Nenhum autor em Portugal fica milionário a vender livros. Não neste mercado tão pequeno.
Pior ainda quando os meios disponíveis para se chegar a uma editora tradicional são exíguos ou obviamente ineficazes:
− Os concursos literários habituais não chegam, se continuam reféns de critérios restritivos (o Prémio Saramago, por exemplo, só contempla escritores até aos 40 anos, como se o talento literário tivesse prazo de validade!), de interesses financeiros, e até de agendas políticas (não sejamos ingénuos em achar que o facto de os vencedores dos prémios literários em Portugal nos últimos anos serem autores brasileiros ou dos PALOP se deva apenas à fraca qualidade dos autores portugueses a concurso; sem querer tirar qualquer mérito aos vencedores, como é evidente, todos sabemos como Portugal se põe sempre em bicos de pés para entrar nos mercados lusófonos, em particular no atractivo gigante mercado brasileiro).
− Um raquítico e mal gerido endereço de e-mail para recepção de originais não chega, se não há mão-de-obra suficiente e adequada para tratar os manuscritos. Como é que as editoras não têm ainda todo um departamento para descobrir os novos talentos? É caro, dirão. Pois será, mas tornar-se obsoleto não será mais barato...
As editoras tradicionais podem fazer mais – aliás, têm a responsabilidade moral e cultural de fazerem mais e melhor, num país tão pequeno mas historicamente com tanto ou mais talento literário per capita que um grande. E a verdade é que conseguem realmente fazê-lo, se o quiserem.
Ousem mais. Circulem mais nas redes. Vão aos blogs. Percam o preconceito de avaliar os autores autopublicados. Leiam o que se escreve e o que se lê fora da vossa esfera de actuação habitual. Leiam o que os leitores comentam – consultem-nos mais.
Entrem na época em que estamos: poderá nunca mais haver Saramagos nem Vergílios Ferreiras, mas há muitos potenciais Valteres Hugos Mães, Rafaelas Jacintos, Joões Tordos, Claudias Lucas Chéus, Valentinas Silvas Ferreiras, prontos a serem encontrados.
Afinal, 37,3% do mercado merecem uma exploração de perspectivas de crescimento mais afincada, ou não?
Não sei se as minhas sugestões bastariam. Eu não tenho mais soluções que todos os escritores bloguistas e autopublicados. Nem tão-pouco pretendo ensinar o pai-nosso literário aos vigários editoriais.
Contudo, dizerem-nos que a ficção em Portugal está em crise, é diminuir o trabalho persistente, consistente, incessante, inovador e até, atrevo-me a dizer, valente, que tantos, (pronto Ego, agora!) como eu − mas muitos muito mais do que eu −, fazem todos os dias, pela conquista dos seus sonhos. E porque a sua vida é esta e não pode ser outra: escrever.
Assim, perdoe-me a autora do artigo, aliás, perdoem-me todos nesta indústria: os que editam, os que escolhem, os que opinam, os que criticam, os que influenciam, os que decretam o que é bom ou mau ou assim-assim – mas afirmar que a ficção em Portugal está em crise é afirmar que estes escritores não existem. Nós não somos ficção – apenas a escrevemos.
Fontes:
Dados da APEL no Observador