Género inteligente
O que é a inteligência? É ter capacidade de raciocínio célere e assertivo? É ser capaz de argumentar qualquer tópico – seja a defender ou a atacar um ponto de vista? É ter propriedades de retórica e eloquência? É ser excelente a determinadas disciplinas científicas, mormente a matemática? É ter sempre disponibilidade para aprender mais? É ter um Q.I. elevado?
Ser inteligente talvez inclua ou possa incluir estas características, ou apenas algumas delas. Mas para mim, há algumas outras que são condição absolutamente sine qua non. (Há mais, mas por agora centrar-me-ei apenas nestas, que já nos darão pano para muita manga.)
– O sentido de humor –
Pode ser diferente de pessoa para pessoa, nem todos acham piada às mesmas coisas. Eu, por exemplo, aprecio o humor cáustico de um Ricky Gervais, ou a obscena amoralidade de um Jimmy Carr, mas para algumas pessoas poderão ser apenas ofensivos ou ordinários. Há quem aprecie o mais consensual (hoje, há 30 e 40 anos atrás não o era, de todo) British nonsense dos incontornáveis Monty Python, ou a menos consensual, mas ainda muito British, sátira contemporânea de Eddie/Suzy Izzard ou Sarah Millican, o humor implosivo e agridoce da Hannah Gadsby, ou ainda, para ser mais patriótica, o ácido Bruno Nogueira, a corrosiva Joana Marques, ou a imprescindível e originalíssima Bumba Na Fofinha.
Contudo, não discutindo os gostos nem para que lado se mostra mais sensível o funny bone de cada um, o que é certo é que a ausência total do sentido de humor não pode configurar, na minha perspectiva, uma pessoa inteligente. Seja-se mais adepto da comicidade brejeira de um Fernando Rocha, ou da infalibilidade garantida de um Herman José, tanto faz. Isto porque o humor faz algo que poucas disciplinas artísticas são capazes de fazer: veicular a crítica social, transmitindo a mensagem que tem de transmitir de uma forma imediata e subtil (ok, às vezes nada subtil). Mesmo para o mais empedernido resistente às mudanças sociais, pode haver esperança de evolução, se ele tiver sentido de humor, porque com o sentido de humor aprendemos a olhar para nós próprios e a perceber que, muitas vezes, o vergonhoso é risível.
Discutir os limites teóricos do humor é matéria que também interessa muito à inteligência, mas merece (e poderá eventualmente ter) um artigo completo em sua honra. Veremos o que os deuses dos antagonismos futuros nos reservam...
– Sentido de civismo –
Genericamente, não poluir, deixar as coisinhas na natureza tal como as encontramos (ou seja, sem fazer lixo, nem mexer nas putas das pedrinhas e pauzinhos para fazer contruçõezinhas para ficarem bonitas no Instagram, e foderem no processo três ou quatro micro ecossistemas), e se possível, em melhor estado (apanhar o lixo alheio é sinal de enorme virtuosismo cívico), não vandalizar, não estacionar o popó em cima do passeio ou em segunda fila e o resto da malta que aguente, deixar passar à frente nas filas as pessoas com mais idade ou denotando fragilidades, ou mulheres grávidas, ou pessoas com crianças de colo, ou todas as que pertençam ao perfil prioritário e não estejam a usufruir do seu direito por timidez ou até desconhecimento, e mais especificamente nas filas no supermercado, as pessoas que só têm um ou dois artigos para pagar - não é obrigatório, mas é gentil. Ser educado, dizer bom-dia e boa-tarde, faz favor, com licença e obrigada, enfim, o básico.
– Inteligência emocional –
Tão apregoada pelos filósofos de memes e terapeutas da treta, é, não obstante, algo real e intelectualmente palpável. Infelizmente, a sua distribuição per capita é parca e, quiçá, até injusta. Mas o que é, ao certo? Não sei o que dizem os autodesignados teóricos da matéria (e pouco me interessa saber, honestamente). Sei o que eu entendo que é.
Quem dela é dotado, é uma pessoa que rege com uma sabedoria ímpar, que para mim é obscura e indecifrável, os eventos traumáticos da sua vida, absorvendo deles o que precisa de apreender, registando o que é necessário nunca mais esquecer, mas aprendendo a verdadeira lição que a sua existência num mundo cheio de gente merdosa lhe proporcionou, sem se converter também ela, como o merdoso resto dos comuns mortais, numa criatura merdosa, a chafurdar, pelo remanescente dos seus dias, numa lagoa – adivinhem! – merdosa, cheia de rancor, azedume e ressentimento, e devolvendo aos que a rodeiam a mesma kármica caca, em gestos retorcidos de malvadeza.
É perdoar? É esquecer? É mistério para mim. Obviamente, esta característica não a tenho. Se vocês tão-pouco a reconhecem no vosso íntimo, não desanimem! Há esperança! A boa notícia é que podemos sempre tentar aprender, senão tudo, pelo menos uma parte – principalmente com o imaculado exemplo de pessoas que a têm, se tivermos a sorte de conhecer alguma. Eu tenho sorte, conheço. E, com dificuldade extrema, tento perceber e aprender. Tenho ainda todo um Kilimanjaro de conquista de maturidade emocional pela frente, mas a esperança é grande, ou pelo menos resistente. Se tal não vos for de todo possível, façam como as restantes bestas (sagradas, entenda-se) da zénitude de trazer por casa, e finjam por esses cornos insensíveis acima.
– Respeito pelo próximo –
O respeito a priori e por defeito pelo próximo é, quanto a mim, uma evidência clara e imprescindível de inteligência. E é nesta característica que, se me permitem, me vou alongar.
Digo respeito e não tolerância. A tão aclamada tolerância é o feto mais absurdo que o politicamente correcto pariu, já que implica necessariamente o oposto do seu propósito, que é não discriminar alguém, porque tolerar não é respeitar, é tão somente permitir algo com paternalismo e condescendência. Assim, não falo de tolerar (quem sou eu para tolerar ou deixar de o fazer, seja quem for?) mas de respeitar a diferença, quer por acção quer por atitude – ou seja, mais uma vez, o basiquinho gostoso: não ser racista, xenófobo, homofóbico, transfóbico, misógino, ser a favor da igualdade de género, estando consciente do direito absoluto e imanente de cada um se identificar e assumir como pertencente ao género que muito bem entenda.
É evidente que aqui também se inclui o respeito por outras características de opinião pessoal, e não necessariamente de identidade intrínseca, como a religião, a ideologia política, mas cientes que estas resultam de convicções pessoais, de aprendizagens e, resumidamente, por efeito da socialização, e que são potencialmente mutáveis ao longo de uma vida. Ser transgénero, homossexual, preto, mulher, ou portador de deficiência não depende de nenhuma opção deliberada, não é uma escolha. Se alguém nasce mulher por dentro, mas no seu corpo existem características masculinas que a biologia erroneamente lhe atribuiu, tem todo o direito de empreender todas as acções que julgue necessárias para que o seu corpo corresponda ao seu íntimo. Não é uma escolha, é uma rectificação.
É, aliás, um exercício de respeito fácil de fazer: imaginem que, sentindo-se vocês exactamente como se sentem (binários ou não), a vossa anatomia não vos faz correspondência. Não envidariam todos os esforços - ou pelo menos, sentiriam profunda vontade de os envidar – para que a correspondência se estabelecesse? Claro que sim, e quem disser o contrário não está a ser moralmente honesto. E isto no campo da mera imaginação, pois se a anatomia com que fomos brindados está em consonância rigorosa com o que sentimos ser (desejar narizes menores ou pilas maiores não conta!), o mínimo que devemos fazer é respeitar quem não teve a mesma sorte na lotaria biológica, e tenta, pelos meios que dispõe, lográ-lo.
Aplaudimos, enquanto sociedade, o esforço que muitas pessoas com necessidades especiais efectuam ao longo das suas vidas – sejam em termos de adaptação, exigindo o direito de acesso e participação activa e digna na sociedade, seja por lutarem por obter acessórios, que a evolução tecnológica da ciência foi capaz de disponibilizar, para facilitar a funcionalidade do seu dia-a-dia, bem como o seu bem-estar físico e psicológico, algo que muitos de nós damos por garantido sem nos apercebermos do quão não o é para todos. E devemos aplaudir, de facto têm todo o mérito.
No entanto, se uma pessoa trans procura fazer o mesmo – ou seja, tentar adequar o exterior ao interior, para facilitar a funcionalidade do seu dia-a-dia, bem como o seu bem-estar físico e psicológico, algo que muitos de nós damos por garantido sem nos apercebermos do quão não o é para todos – cai o Carmo e a Trindade, e aqui d’El-Rei que é uma aberração! Coerente, não? Pois não, e inteligente muito menos.
O respeito automático e por defeito pela individualidade integral de qualquer pessoa, passa também pela forma como nos dirigimos a ela. As pessoas da tão alardeada velha guarda, licenciados da autodenominada escola da vida, defensores da pretensa moral e bons costumes, vão facilmente entender este exemplo. Se se dirigem, pela primeira vez, a uma senhora mais velha que vocês, vão tratá-la por tu? Diria que 90% das vezes, não vão. Vão dizer “minha senhora, como está”, e só saltarão a fasquia da intimidade de trato se ela vos autorizar a tal, ou disser que assim o prefere. Dirigirmo-nos a alguém que não conhecemos pelo pronome com que a pessoa se identifica é, do mesmo modo, uma questão de educação e respeito básicos. Não sabem qual é? Perguntem. Perguntar com honestidade não ofende ninguém. Porque há-de ser assim tão inconcebível acatar o respeito por outrem na última situação, se não o é na primeira? Respeito é respeito.
Porque quando falamos de respeito pelo próximo, seja o próximo quem for e esteja o tão distante do que somos, ou do que entendemos que somos, quanto estiver, falamos de salvaguardar todas as liberdades e garantias a que todos temos direito, falamos de direitos humanos. Porque quando respeitamos os outros, sejam alegadamente diferentes ou não, respeitamo-nos a nós mesmos, e respeitamos o que a todos pertence.
Por isso, meus caros, se não se têm estas características não é possível, de todo, ser-se inteligente. Pode ser-se eloquente, racional, inovador, inventivo, talentoso, criativo, outras tantas coisas... inteligente, temos pena, mas não.
Eu considero-me respeitadora, cívica, com capacidade de me rir até de mim própria, e, embora ainda tenha algum trabalho a fazer na gestão emocional, tento aprender mais todos os dias. A beleza da inteligência é que, se a temos, podemos sempre aumentá-la. E eu tento ser do género inteligente.
Nota: há estudos que atestam que as pessoas que dizem muitos palavrões têm uma inteligência acima da média (que compensa largamente a sua eventual reduzida inteligência emocional...).